“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
(Eduardo Alves da Costa)
Um dos maiores méritos do estudo da História é, sem dúvida alguma, permitir que através da análise de fatos ocorridos no passado possamos balizar nossas ações no presente e no futuro, evitando incorrer nos mesmos erros de outrora. Neste sentido, o poema do brasileiro Eduardo Alves da Costa, comumente atribuído a Bertold Brecht, nos leva a pensar em movimentos que com freqüência ocorrem ao longo do processo histórico com o sentido exatamente de nos “arrancar a voz”, de tolher nossos direitos.
Não é exagero pensar que estamos diante de um desses momentos, já que a Câmara dos Deputados prepara-se para votar um projeto de lei – o PL 518/09 – que possui um viés totalmente anti-democrático. O projeto em questão, conhecido como “Ficha Limpa”, é um projeto de iniciativa popular que foi apresentado ao Congresso em meados do ano passado, sendo anexado a ele uma lista com 1,3 milhão de assinaturas que foram colhidas pela CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) e ONGs.
Tendo em punhos a bandeira de um suposto “zelo pela ética”, o Ficha Limpa constitui na verdade um projeto de caráter autoritário e elitista, que nos faz lembrar ações muito parecidas ocorridas em um passado não distante, por ocasião do golpe de 64. Ora, a democracia possui dois pilares centrais, sem os quais ela não funciona: o princípio de que o poder emana do povo e o princípio da presunção da inocência. E o projeto de lei em questão atinge em cheio esses dois pilares democráticos, constituindo, portanto, uma ameaça à democracia brasileira.
Todo poder emana do povo
A Constituição Federal de 1988 garante, já no seu artigo 1º, que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente”. Já vemos aqui que o tal projeto Ficha Limpa esbarra nesse princípio constitucional ao defender a idéia de que um colegiado escolha nomes que o povo poderá em seguida escolher. Isso nada mais é do que reduzir o poder de escolha da população, passando-o para um colegiado que teria o papel de ser “juiz da escolha”.
E a democracia só é plena se o povo for o juiz de sua própria escolha, sem a interferência de qualquer grupo ou poder. O que o projeto em questão pretende, neste aspecto, é judicializar a política, transferindo o centro da decisão democrática e política da vontade soberana do povo para o Poder Judiciário, sendo, dessa forma, uma postura totalmente anti-democrática. Em outras palavras, o Ficha Limpa pretende estabelecer uma “peneira” feita por um conjunto de ONGs, de entidades, que não são o povo, mas que irão selecionar candidatos aptos ao povo votar.
Isso é democrático? Claro que não é. Trata-se de uma visão autoritária e elitista, que não acredita que o povo pode ser a própria peneira, através do seu voto. Aliás, se existe algo que não podemos jamais abrir mão é justamente isso: o controle da política deve ser feito pelo povo, através do seu voto e da pressão popular, e jamais através de qualquer outro meio, seja o Poder Judiciário ou um colegiado de ONGs que não representam a totalidade do povo.
Cassação de direitos políticos
Outro aspecto de caráter amplamente autoritário no projeto Ficha Limpa diz respeito à cassação dos direitos políticos por 8 anos daqueles que tenham algum tipo de condenação judicial, ainda que em primeira instância. Ora, todos sabemos que o homem público – seja ele político, jornalista, artista etc – está sujeito a enfrentar milhares de processos ao longo de sua vida. O artigo 5º da CF, em seu inciso 57, afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Percebe-se aí que, ao instituir a cassação de direitos políticos a condenados ainda que em primeira instância, o projeto Ficha Limpa fere frontalmente o Princípio da Presunção da Inocência, que é garantido pela Constituição! Cria-se com isso, inclusive, a possibilidade de ocorrer perseguições políticas, o que não seria uma novidade no Brasil, já que em abril de 1964, o Ato Institucional 1, dava à Junta Militar o poder de cassar por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão pela sua vida pregressa.
E mais uma vez devemos prestar atenção na História: quais eram os “crimes” que motivavam a cassação de direitos políticos nos anos de chumbo? Sabemos que a esmagadora maioria dos que tiveram cassados seus direitos foram acusados de “subversão” pelo simples fato de pensarem diferente do poder militar – por isso foram chamados de “Ficha Suja”. E agora com esse projeto? Qual a garantia de que não haverá esse tipo de perseguição política? O que garante que pessoas envolvidas em movimentos sociais, em sindicatos etc não recebam a alcunha de “ficha suja”?
Devemos, dessa maneira, fazer uma ampla frente de defesa da democracia brasileira contra esse projeto autoritário e elitista chamado de “Ficha Limpa”. Não podemos permitir que um projeto que quer tirar do povo o poder de decisão política seja aprovado! O Brasil já teve uma amarga experiência de viver mais de duas décadas sem democracia e, neste ponto, recorro novamente ao poema que abre esse texto: antes de arrancarem por completo a nossa voz, eles arrancam primeiro uma flor do nosso jardim.
Concordo com vc Leandro!
ResponderExcluirA princípio como todo mundo eu também estava apoiando essa PLP 518/09, mas depois de assistir o debate na TV Câmara, percebi se tratar de mais uma manobra da oposição para enfraquecer o governo e tentar tirar do povo a democracia, colocando na mão de juízes corruptos.