Seria ilusão pensar que a grande imprensa brasileira assistiria à estagnação da candidatura presidencial de José Serra, como evidenciado pelas recentes pesquisas de intenção de voto divulgadas nesta semana, sem tomar iniciativas para tentar reverter o quadro. Afinal de contas, os grandes veículos de comunicação do país – Folha, Estadão, Globo – parecem ter se especializado no ataque e na tentativa de desconstrução do governo Lula e da pré-candidata governista Dilma Rousseff. Desde sempre foi assim e não seria agora que a imprensa agiria de forma diferente.
Neste sentido, chama à atenção a mudança promovida pela Folha de São Paulo, desde o último sábado, 22, em suas editorias. Mais do que uma reformulação do layout do jornal, inclusive em sua versão eletrônica, a Folha renomeou, como a de política, que passou a ter o nome de “Poder” em substituição a “Brasil”. A mudança mais profunda, contudo, não foi no nome da editoria, mas no formato como um todo, que ganhou novos colunistas, novas seções e, pelo que se pôde perceber a partir de declarações da jornalista responsável, novas políticas de redação.
Antes de prosseguirmos, duas ressalvas importantes: não se pretende, neste artigo, questionar a legitimidade da Folha em fazer essas alterações. Para este blog, a liberdade de imprensa é um pilar imprescindível da democracia, de forma que qualquer forma de cerceamento a este valor coloca em risco todo o sistema democrático. Em segundo lugar, não se procura estabelecer aqui uma “teoria da conspiração”, já que se sabe que esta reformulação da Folha já estava sendo planejada há muitos meses. O que discutiremos aqui são os riscos desse novo formato para a suposta “neutralidade” na cobertura das eleições presidenciais deste ano, em especial em um veículo que tem mostrado, desde sempre, grande tendência à fuga da imparcialidade.
É possível fazer análise política com isenção?
Feitas essas ressalvas, passemos então a analisar as alterações feitas pela Folha, que já valem a partir deste domingo. Em primeiro lugar, não passa despercebida uma declaração feita pela editora de “Poder”, Vera Magalhães, sobre a essência da mudança: “A cobertura será mais voltada à análise dos discursos dos candidatos, antecipando estratégias, esmiuçando propostas e verificando sua viabilidade. Haverá menos espaço para a reprodução pura das declarações dos candidatos”. Ora, todos sabemos que qualquer análise feita no âmbito das ciências humanas, e a política não é exceção à regra, sempre carrega consigo um determinado juízo de valor.
Este, inclusive, é um dos grandes paradoxos apontados pelos cientistas sociais sobre a suposta “neutralidade axiológica” na análise social. Uma pessoa que se propõe a fazer uma análise sobre o aborto, por exemplo, por mais que tente manter uma postura neutra, sempre irá encontrar uma grande dificuldade em não conduzir o seu texto de acordo com os seus valores pessoais. Jornalistas são pessoas e, como tais, não estão imunes à tentação de conduzir seus artigos de acordo com impressões pessoais, especialmente no campo da política, onde dificilmente encontramos indivíduos neutros a esta ou àquela idéia.
Um repórter que tenha uma visão política mais à esquerda conseguirá analisar com a neutralidade exigida um discurso de um candidato de centro-direita? E o contrário: um jornalista que simpatiza com visões mais à direita conseguirá tratar com neutralidade as declarações de um candidato de esquerda? Mas a questão principal é: estes repórteres, mais do que cuidar para que suas análises não estejam impregnadas de impressões pessoais, estarão submetidos a que tipo de linha editorial? Todo veículo de comunicação tem, por excelência, uma determinada linha editorial, que serve como norte para tudo que ali é produzido. No caso da Folha existe uma falta de informação sobre essa linha editorial, já que o jornal não declara abertamente qual a sua preferência política, embora todos possamos identificar nas entrelinhas e nas manchetes recorrentes do jornal.
O que se coloca em questão é: quando a linha da antiga editoria “Brasil” focava mais reportagens em torno das declarações dos candidatos, já havia uma tendência clara em favorecer pautas positivas para o tucanato e pautas negativas para o petismo. Agora, com essa reformulação – e com o foco alterado para a análise dos discursos dos presidenciáveis – até que ponto as matérias da Folha não beneficiarão mais este ou aquele candidato? E até que ponto o jornal não servirá como panfleto político desse ou daquele grupo, encobrindo sua linha editorial sob o suposto manto da “imparcialidade jornalística”?
O promessômetro e o mentirômetro
Outra reformulação que vale a pena ser analisada diz respeito à inclusão de duas novas seções na editoria “Poder”. De acordo com a própria Folha, a editoria passará a contar com as seções “promessômetro” e “mentirômetro”. O “promessômetro” será uma espécie de termômetro das promessas feitas pelos candidatos, que oscilará entre o “viável” e o “inviável”, enquanto o “mentirômetro” será um termômetro das supostas mentiras – ou “imprecisões”, como dito pela Folha – nos discursos dos postulantes à Presidência da República.
Aqui, vale a análise feita anteriormente: até que ponto o jornal dará conta de fazer essas avaliações de forma completamente isenta? Afinal de contas, uma imprecisão no discurso de um candidato que tem a simpatia do jornal pode ser simplesmente ignorada no “mentirômetro”, da mesma forma que uma promessa mais ambiciosa feita por um candidato que não tem a simpatia da Folha pode ser taxada de “inviável” no seu “promessômetro”, sem que o jornal tenha o mínimo cuidado de pesquisar se aquela promessa é amparada por estudos técnicos.
Vê-se, dessa maneira, que as mudanças na editoria de política da Folha podem conduzir o jornal a um tratamento ainda mais desigual dado aos candidatos. O caminho mais sensato para o veículo da família Frias evitar dores de cabeça futuras seria, naturalmente, abrir a sua linha editorial, assumindo o lado político que ela representa. Por outro lado, a partir do momento que um jornal se declara “imparcial” (por mais que saibamos que ele não seja), qualquer parte que se sinta lesada dentro de tal princípio tem a legitimidade de contestar.
Assim, a Folha caminha em um terreno arenoso, pois pode ser traída a qualquer momento pela sua própria insistência em se declarar um jornal imparcial, quando na verdade não é. E que seja salientado: as críticas feitas ao “modus operandis” do veículo de comunicação não são, em aspecto nenhum, formas de tentar cercear a liberdade de expressão do jornal, mas tão somente cobranças sobre a coerência do discurso e da prática da linha editorial do mesmo. Acompanhemos de perto, portanto, qual será a “neutralidade” dada na cobertura dessas eleições pelo jornal. O certo é que, ao que tudo indica, a ombudsman da Folha terá muito trabalho pela frente.
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