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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

"Não se trata de entrar, matar e sair", diz Tarso sobre política de segurança pública do Brasil

O êxito da operação policial e militar que retomou para o Estado áreas ocupadas pelo narcotráfico no Rio de Janeiro, como o Complexo da Penha e o Complexo do Alemão, tem extravazado as fronteiras brasileiras e repercutido no cenário internacional. Nesta quinta-feira, 2, o jornal argentino Página 12 trouxe uma entrevista com o governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, sobre a questão da segurança pública no Brasil. Tarso, na época que ocupou o Ministério da Justiça, foi o idealizador do Pronasci, programa de segurança pública responsável por trazer à cena um novo paradigma sobre a questão.

O Pronasci estabelece um novo paradigma pois ele mescla política de segurança pública com ações sociais, priorizando a prevenção e utilizando a repressão somente quando necessário. Além disso, um diferencial do Pronasci em relação a programas anteriores diz respeito à tomada de medidas que visam combater as causas que verdadeiramente levam à violência. Atualmente, o programa é composto por 94 ações que envolvem uma parceria entre União, Estados, Municípios e as comunidades nas quais ele é implementado – as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), por exemplo, são uma ação que estão inseridas nessa concepção do programa.

Abaixo, segue a íntegra da entrevista de Tarso Genro ao jornal argentino:

Página 12 - Qual era o novo paradigma de segurança [do Pronasci]?
Tarso – Uma concepção de polícia comunitária. Essa polícia devia ocupar os espaços e articular seu trabalho com programas sociais nas zonas de conflito.

A polícia comunitária é uma polícia a mais?
Não, é uma concepção. Propusemos que em cada estado se formassem gabinetes de segurança pública com a presença da polícia federal, polícia rodoviária, polícia militar, polícia civil e autoridades políticas do estado. Todos deviam articular relações e objetivos comuns.

Somente nos Estados?
Também nos municípios. E pela primeira vez. Ali pensamos também programas sociais voltados principalmente a jovens e mulheres que são treinados...

Treinados?
Não se assuste. Falo de capacitação, não de que se transformem em policiais. Somente têm que buscar outros jovens que estão submetidos à tutela dos traficantes e criminosos do bairro. Se não sabemos quem são, não podemos ajudar. E queremos que o Estado, as mães e seus amigos possam ajudá-los a serem pessoas autônomas. Para a polícia pensamos outras coisas. O governo federal propôs financiar programas sociais, armas, equipamentos e bolsas de estudo para os policiais que queiram melhorar sua formação. A melhoria é premiada com um aumento de 40% no seu salário. Hoje já estão com bolsas de estudo em todo o Brasil 200 mil policiais de todos os corpos.

Em quantos estados o programa é aplicado?
Em onze e nas regiões metropolitanas mais importantes. O Rio de Janeiro foi a vanguarda da integração. O conceito de polícia comunitária recebeu o nome de Unidade de Polícia Pacificadora. Mas a idéia é a mesma.

E a idéia chave?
É um projeto de ocupação territorial. O sistema anterior era entrar, matar e sair. O novo sistema consiste em que o Estado entre, permaneça e se vincule profundamente à comunidade mediante programas sociais, investimentos em infra-estrutura, educação e urbanização. Ou seja: ocupação do território, ações policiais de alto nível, permanência da polícia e aprofundamento dos programas sociais para jovens. No Rio foi muito importante o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, nomeado pelo governador Sérgio Cabral. Beltrame está convencido do Pronasci e é um entusiasta.

A experiência argentina mostra que na província de Buenos Aires, muitos policiais [ligados sistematicamente no combate ao tráfico] acabaram, anos depois, a integrar a própria rede do tráfico.
Que o crime organizado consiga cooptar um policial ou alguns moradores da comunidade sempre é possível. Oferece segurança, quer dizer “proteção” desde que obedeça, e dinheiro. O Pronasci, todavia, se baseia na relação entre as mulheres organizadas e treinadas, que recebem bolsa de estudo para se capacitar, e os jovens, que também recebem bolsas de estudos.

Elas não devem “espiar” para a polícia?
Não. Nós a chamamos “Mulheres da Paz”. Não têm funções policiais nem de vigilância. Somente identificam jovens em situação de risco para incluí-los em programas sociais, educacionais e de formação profissional. Assim se formam redes sociais e também os fiscais podem ouvir a demanda das pessoas da comunidade. O que manda no território deixa de ser o narcotráfico. O único que pode oferecer segurança verdadeira é o Estado.

Os últimos movimentos no Rio foram espetaculares. Também foram importantes?
Muito importantes. Sempre acreditamos que o ponto crucial era justamente aquele ocupado no domingo, o Complexo do Alemão, que agrega 16 favelas e tem uma localização estratégica ao norte da cidade.

Mas o mercado consumidor da droga é a zona sul, onde vive a classe média, junto às praias.
Sim, é o principal. O narcotráfico gera uma estrutura de integração perversa entre pobres, ricos e consumidores aos fornecedores. E não falo somente dos viciados, mas sim dos que usam a droga como parte de sua sociabilidade. Os compradores e os ricos devem compreender que o consumo, ainda que seja por “prazer” ou “modo de vida”, é o que alimenta a violência. Por isto, o ciclo de combate ao tráfico e a instrumentalização da juventude das favelas tem que passar também por estes setores. Eu falo do Brasil, um país muito grande e com elementos específicos. No Brasil é necessária a repressão penal aos que compram inclusive pequenas quantidades de droga. Eles também são responsáveis pela construção do sistema de poder dos grupos mafiosos. Um adulto que compra uma pequena quantidade de um garoto de 17 anos é um criminoso, porque está na ponta de uma cadeia de circulação e produção que gerou esta situação no Rio.

Durante as operações espetaculares nas favelas do Rio a cobertura jornalística não tocou no tema de lavagem de dinheiro.
Temos bons mecanismos, inclusive de extradição e busca de quantias depositadas no exterior, muitas vezes ligadas à evasão e corrupção. Isso deve combater-se. Faz pouco tempo o Rio fez um combate exemplar às milícias, uma organização de proteção mafiosa relacionada com velhos dirigentes políticos locais. Um bom trabalho da polícia local e da polícia federal as desmantelou. Foi uma grande vitória da segurança pública. São muitos aspectos. Por isso lhe dizia que devemos romper o quanto antes a identidade entre os criminosos e os consumidores. Ou seja, romper o mercado. O que faz a DEA? [DEA = Drug Enforcement Administration; é uma agência de repressão às drogas subordinada ao Departamento de Justiça dos EUA] Cuida para que entre a menor quantidade possível de drogas no território norte-americano. É o seu trabalho. E o nosso é proteger o nosso território. Por exemplo, as favelas povoadas de brasileiros pobres. Não queremos fazer o trabalho pela metade. Não buscamos somente apreender a cocaína e queimá-la. Vamos destruir as fábricas da pasta e do pó. Veja, algum nível de tráfico de drogas vai existir sempre. Nosso objetivo é que seja residual. O tráfico não pode ser a única forma que um jovem tenha de crescer na vida. Não vamos nos iludir com um paraíso terrestre de bondade e segurança. Falamos de um projeto concreto que busca cortar o mercado [da droga] e dar alternativas aos jovens. E isso já está ocorrendo em muitos territórios.

Caiu a quantidade de homicídios?
No Recife, a criminalidade caiu 60%. Em um grande bairro pobre do Rio Grande do Sul, Guajuviras, que aplica todos os programas do Pronasci, a criminalidade recuou 50%. Isso é fruto de uma nova relação Estado-sociedade. E tem que se melhorar o salário dos policiais. No Rio Grande, um policial ganha dois salários mínimos, R$ 1.000. Se faz parte do Pronasci, ganhará R$ 1.400. Esses R$ 400 de diferença não são pouco: servem para alugar um apartamento de dimensões razoáveis.

Isso quanto a polícia. Na Argentina, impressiona ver tanques do Exército nas operações.
Reitero que falo somente do Brasil. Além do mais, as forças do Exército não participaram de ações armadas. Somente controlaram pontos de intersecção. O trabalho foi feito pelos policiais. Temos uma “Força Nacional” graças a um programa do governo federal que tem capacidade de colocar em qualquer ponto do território nacional em 48 horas de 300 a 500 homens altamente treinados para realizar ações policiais com respeito absoluto aos direitos humanos. Tenha em conta que no Brasil os dois corpos mais respeitados são o Exército e a Polícia Federal. Os militares tiveram o poder absoluto em uma ditadura que durou 21 anos, entre 1964 e 1985. Mas paradoxalmente o Exército não tem uma tradição de violência contra a população nas ruas. Obviamente estiveram envolvidos institucionalmente e massivamente em casos de tortura ou crimes dignos de barbárie, mas não promoveram uma caça como em outros países da América Latina.

Parte dos chefes do tráfico emitem ordens de dentro das prisões. Qual seria a solução?
Há quatro penitenciárias de segurança máxima para onde estamos mandando os chefes do tráfico e construímos uma quinta. O sistema penitenciário estadual é frágil, fere duramente os direitos humanos e deve ser reformado. A proposta do Pronasci é a construção de penitenciárias de segurança média para até 450 presos. Assim ficarão fora do controle dos delinquentes.

O sr disse que o Pronasci repassa fundos federais.
Sim, e vou te contar um dado inacreditável. Tivemos dificuldade de liberar recursos por falta de projetos. Poucos estados pediram nossos recursos.

A situação pode mudar a partir de 1º de janeiro, quando assumem governadores do PT e de partidos aliados?
Sim. Dilma disse na campanha eleitoral que a segurança pública e a saúde pública serão dois elementos chaves do novo governo. Durante meu último ano no Ministério da Justiça fizemos uma conferência nacional sobre o tema. Participaram mais de 250 mil pessoas e reforçamos nossos objetivos para chegar a formar nas regiões mais degradadas os chamados “territórios da paz”, que são os lugares onde os projetos mais importantes do Pronasci entram de maneira articulada. Sonhamos em chegar aos índices chilenos de homicídio, de 12 a 14 para cada 100 mil habitantes. Hoje temos de 45 a 50 por 100 mil habitantes na Baixada Fluminense, no Rio, e de 27 a 28 no Rio Grande. Reduzir os índices pela metade é algo que pode demandar de cinco a dez anos. Só que a imprensa quer resultados imediatos e fenomenais. Mas um programa sério é gradual e tem que modificar a mentalidade das elites.

Cabral, governador do Rio aliado ao PT, foi reeleito em 1º turno. Quanto pesou o Pronasci?
Muitíssimo. Ele disse muito bem: “as Unidades de Polícia Pacificadora são filhas do Pronasci e da nossa relação com o governo federal”. E obviamente eu farei o mesmo quando assumir o governo do Rio Grande do Sul. Será parte de um modelo de participação popular. Queremos que seja tão popular quanto o orçamento participativo que aplicamos antes em Porto Alegre.

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