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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

História das enchentes em SP: urbanização e as primeiras inundações no século 19

Charge da revista "O Cabrião", de 24 de fevereiro de 1867, mostrando os personagens em meio a uma inundação na rua do Imperador (atual lado esquerdo da Praça da Sé)
Como todos sabem as grandes enchentes que assolam São Paulo todos os anos durante o verão não são um fato novo na história da cidade. Evidentemente, por questões ligadas à morosidade do poder público em tomar medidas eficazes para combatê-las, as enchentes nos dias de hoje têm um poder de destruição maior do que as inundações que atingiam os paulistanos de tempos atrás. De qualquer forma, desde que o processo de urbanização da cidade de São Paulo se acelerou, as enchentes passaram a fazer parte da paisagem urbana na temporada das chuvas, causando dores de cabeça tanto para os habitantes da pequena São Paulo do século 19 quanto para aqueles que habitam a grande metrópole do século 21.

E de certa forma esse problema que continua assolando os paulistanos tem sua origem na opção de ocupação territorial do espaço geográfico nos primeiros anos da cidade. Neste sentido, desde os primórdios de São Paulo, a ocupação humana ocorreu ao redor dos rios e córregos da região, por uma questão até de facilidade para obtenção de alimentos (através da pesca) e também de locomoção, além, é claro, desses primeiros moradores do núcleo urbano terem a concepção de que o rio seria uma boa maneira para escoar a sujeira produzida por eles. Assim, o vilarejo de São Paulo nasceu numa região de colina, cercada por dois importantes caminhos d’água na época: de um lado o rio Tamanduateí e do outro o Ribeirão Anhangabaú.

Sabemos que nos primeiros dois séculos de ocupação a cidade de São Paulo se resumia a um vilarejo sem maior importância, já que os grandes núcleos econômicos do Brasil na época estiveram, em primeiro lugar, no Nordeste (ciclo da cana-de-açúcar) e, posteriormente, na região de Minas Gerais e Goiás (ciclo do ouro), de forma que São Paulo só foi elevada à categoria de cidade em 1711, durante a mineração. Mas foi somente no século 19, devido a mudanças na estrutura econômica do país, que o processo de urbanização de São Paulo começou a se acelerar. À medida que a cidade vai recebendo novos moradores, sua expansão vai ocorrendo também ao redor dos rios e córregos. Na imagem abaixo, por exemplo, vemos a região da Várzea do Carmo (atual Parque Dom Pedro II), com o rio Tamanduateí cortando sua planície.

Várzea do Carmo em 1821, aquarela de Arnaud Julien Pallière, 1821

Essa aquarela, feita em 1821 pelo pintor Arnaud Julien Pallière, revela qual era a vista que um viajante vindo do Rio de Janeiro ou de Santos tinha de São Paulo logo na sua entrada, pela região do Brás. É interessante notar que as casas e os comércios ficavam, naturalmente, na região mais alta, enquanto as margens do rio eram utilizadas pela população da época para lazer. O historiador Taunay descreve que “bandos e bandos de indivíduos de ambos os sexos, iam banhar-se no Tamanduateí e nas lagoas por ele formadas no seu extravasamento”, salientando, contudo, que o único inconveniente “vinham a ser as picadas de mosquitos, então inumeráveis e insuportáveis, volantes sanguessugas que buscavam sua vida nos sangue alheio”. Esses banhos coletivos às margens do Tamanduateí, segundo os relatos históricos, perduraram até 1890, quando foram proibidos pela polícia.

As primeiras enchentes do século 19
Embora os rios nessa época fossem bem utilizados pela população de São Paulo para o seu lazer, à medida que a cidade se expande e passa a ocupar áreas que anteriormente eram tomadas pelo rio durante o período de suas cheias, as enchentes passam a ser um problema enfrentado pela cidade. E, no século 19, as principais inundações ocorriam justamente no entorno do rio Tamanduateí (que corria paralelamente onde atualmente é a rua 25 de março) e do Ribeirão Anhangabaú, pois era justamente em torno desses rios que se concentravam as moradias e os comércios da São Paulo daquele período. Richard Morse, em sua obra “De comunidade à Metrópole” (1954) descreve assim as cheias do século 19: “por volta de 1820 e ainda por várias décadas depois, a cidade ficava periòdicamente isolada com a enchente de seus dois rios próximos. O sinuoso Tamanduateí, inundando a várzea do Carmo, infligia à cidade 'nevoeiros importunos, humidades, defluxos e reumatismos', privando-a também de terras produtivas”.

De fato, as preocupações do governo em relação às inundações passaram a ser maiores a partir da década de 1820. Em 1822, por exemplo, o governo provisório já expressava sua preocupação em relação às cheias do Tamanduateí, uma vez que estas impediam a população de fazer seus passeios pela região, atrapalhando, inclusive, o comércio. De acordo com documentos da época, o governo assim expressava sua preocupação: “todos padecem grandissimos encommodos no tempo das aguas por ficar o caminho intransitavel, [...] esta [várzea] tem ficado sempre no miseravel estado de terem nella morrido animais empantanados á vista da cidade [...] (Registro Geral, de 11.04.1822)”. Essa região da Várzea do Carmo, mais exatamente entre a Ladeira do Carmo (atual Rangel Pestana) até a atual Rua do Gasômetro, era muito utilizada pelos paulistanos na época como área de sociabilidade, razão esta pela qual o governo ficava extremamente incomodado com as inundações.

Já nessa época o Presidente da Província de São Paulo defendia junto ao Senado, instalado no Rio de Janeiro, obras de canalização do rio Tamanduateí, para evitar os transbordamentos. Outro documento daquela década mostra a insatisfação do governo em relação à ocupação das várzeas do Tamanduateí por proprietários de terra no seu entorno: “e mais proprietarios, cujas casas ficam para a parte do rio Tamandatehy que servindo a vargem contigua ao dito rio de recreio, nella no tempo da secca faziam os moradores os seus passeios.[...] Desappareceram estas commodidades logo que para exgotarem a vargem superior que fica para a parte da Penha se abriram valas, e as suas aguas largadas sem direcção vieram formar os estagnos, que hoje se vêm na vargem contigua a esta cidade. (Registro Geral, de 02.06.1824)”.

A grande enchente de 1850
Os anos foram passando e São Paulo ia crescendo a passos rápidos, sobretudo após o advento do café. A dinamização da economia paulista imprimia uma maior velocidade também ao processo de urbanização da capital da província: o que no século 18 era uma cidadezinha sem maior importância já na segunda metade do século 19 passa a ser uma cidade em ritmo veloz de crescimento não só de tamanho, mas também de importância econômica. Como conseqüência, as inundações também se tornam mais freqüentes. Documentos desse período mostram que a cidade sofreu com uma grande enchente (para a época, claro) no dia 1º de janeiro de 1850. O historiador Eudes Campos assim descreve essa grande inundação:

No dia 1° de janeiro de 1850, abateu-se sobre a capital paulista um intenso temporal, cuja lembrança manteve-se viva por longo tempo na memória paulistana. É fato que a cidadezinha daquele tempo estava habituada às enchentes de verão, que desde sempre alagavam anualmente as várzeas dos Rios Tietê e Tamanduateí, isolando-a no alto da colina onde se achava implantada. Mas, ao que parece, até então São Paulo nunca sofrera tão graves danos dentro dos limites de sua área urbanizada.

A trovoada principiou às 5 horas da tarde e se prolongou até as 11 horas da noite, provocando o transbordamento do Tanque do Bexiga, também chamado Reúno. O Ribeirão Anhangabaú cresceu repentinamente e suas águas arrasaram 15 casas de taipa, danificaram 12 e ainda derrubaram a velha Ponte do Acu, ou da Abdicação, construída em 1809 e localizada no cruzamento da atual Avenida São João com o Parque do Anhangabaú, mais ou menos nas proximidades do Edifício dos Correios. Cronistas antigos fizeram ainda questão de ressaltar que no desastre houve três vítimas fatais.

As conseqüências dessa inundação foram inesperadas, mas a lição que a população tirou delas perdurou. Foi a partir daí que os paulistanos, tão afeiçoados à taipa e só empregando o tijolo em obras de pequena importância, decidiram adotar métodos construtivos mais resistentes à presença da umidade, ao contrário do que acontecia com paredes de terra socada, que simplesmente desabavam ao entrarem em contato direto com a água
”.

De fato, a partir dessa enchente, a reconstrução das casas atingidas foi feita com materiais mais resistentes, como tijolos. Campos segue o seu relato dizendo que “depois da enchente, é fácil encontrar em anúncios de jornal menção a casas em cuja construção haviam sido empregados tijolos. Um sobrado que estava sendo levantado junto do Anhangabaú, localizado, portanto, justamente na área afetada pela cheia de 1850, foi edificado ‘com muitas boas madeiras sobre alicerce de pedra e cal, com paredes de tijolos’ (Correio Paulistano, 10 de fevereiro de 1855). Neste caso, a obra provavelmente não foi executada conforme a técnica da alvenaria autoportante de tijolos, como supomos seja o caso anterior, mas com uma estrutura autônoma de madeira cujos vãos estruturais foram vedados com tijolos, sistema de construção misto muito usado nos meados do século XIX para substituir a taipa”.

A foto abaixo, de Militão Augusto de Azevedo, retrata a região da Ladeira do Carmo em 1862, vista do Brás. É fácil notar ao fundo a cheia do rio Tamanduateí e a inundação das áreas de várzea. Nessa época, a maior parte das casas que eram construídas em São Paulo já utilizava materiais mais resistentes que a taipa, como pedra e tijolo, conforme jornais da época relatam. É interessante notar, contudo, que essas melhorias eram feitas somente nas propriedades privadas, por seus particulares. O periódico “Doze de Maio”, em uma matéria do dia 8 de junho de 1863, destaca que “se olharmos para a edificação [paulistana] alguma coisa há na realidade de novo, mais sólido e de melhor gosto, graças a inundação de 1850, que lançou por terra oitenta e tantas casas [sic!] da antiga edificação de terra e bosta; mas isto é em relação aos particulares, porque no diz respeito a obras publicas nada vemos por ahi que attraia a attenção”.

Ladeira do Carmo vista do Brás, com inundação do Tamanduateí ao fundo. Foto de Militão Augusto de Azevedo, 1862 (Acervo PMSP)

Pelo que vemos, a inércia do poder público frente às enchentes vem de longa data em São Paulo. De qualquer forma, a historiografia nos revela essa interessante adaptação às enchentes da arquitetura paulistana na segunda metade do século 19, que procura edificar construções mais resistentes às cheias dos rios. Eudes Campos destaca que “o grande agente de mudanças seria representado pela ferrovia Santos-Jundiaí (1860-1867), que, ao criar uma enorme demanda de tijolos para serem empregados nos trabalhos de construção da estrada de ferro, acabaria por motivar as olarias paulistanas a produzirem intensamente um tipo de material que até então era difícil de ser encontrado, o tijolo. Convém ressaltar que tudo isso aconteceu muito antes da chegada à Capital das grandes levas de imigrantes italianos (a partir dos anos 1880), o que desfaz um dos tradicionais mitos da historiografia paulistana que afirma terem sido os capimastri os introdutores da alvenaria autoportante de tijolos na cidade de São Paulo. Quando os mestres-de-obras italianos começaram a liderar os canteiros de obras, já encontraram a arquitetura da cidade perfeitamente adaptada à técnica tijoleira”.

As décadas finais do século 19 são marcadas pela continuidade da urbanização acelerada de São Paulo e por um problema que os paulistanos de hoje em dia conhecem muito bem: a poluição dos rios e córregos. Com o crescimento da população, a quantidade de dejetos atirados nos rios crescia em ritmo veloz, de forma que jornais e documentos do final daquele século revelam a preocupação das autoridades públicas em relação à falta de água adequada para o consumo em algumas regiões da cidade, bem como à falta de condições sanitárias. Esse cenário foi o ambiente propício para a proliferação de inúmeras doenças em São Paulo nessa época, como a febre paludosa, que fez com que muitos habitantes ricos da cidade fossem buscar tratamento na Europa. Dessa maneira, o século 19 termina na cidade de São Paulo com o governo local tendo dois grandes desafios para solucionar: a proteção de uma população cada vez maior contra as enchentes e obras de saneamento básico para a cidade.

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