Cardápio do boteko

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

São Paulo: o grande desafio de uma metrópole aos seus 457 anos

Garoa do meu São Paulo,
- Timbre triste de martírios -
Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
Passa e torna a ficar branco.
Meu São Paulo da garoa,
- Londres das neblinas finas -
Um pobre vem vindo, é rico!
Só bem perto fica pobre,
Passa e torna a ficar rico.
Garoa do meu São Paulo, -
Costureira de malditos -
Vem um rico, vem um branco,
São sempre brancos e ricos...
Garoa, sai dos meus olhos
(Mário de Andrade, Garoa do meu São Paulo)


Para além de festejos, shows e comemorações, o aniversário de 457 anos da maior metrópole da América do Sul deve ser visto como um momento para repensar a cidade e a relação entre ela e seus habitantes. São Paulo é, sem sombra de dúvidas, uma cidade extremamente interessante e desafiadora: se por um lado não tem as belezas naturais de outras capitais, ela oferece ao Brasil e ao mundo sua beleza concreta, manifestada nas formas e na diversidade que dominam seu espaço urbano. Pólo econômico, cultural e gastronômico, São Paulo é também o local onde 12 milhões de pessoas constroem suas vidas, lutam pela realização de seus sonhos e se submetem a uma rotina que as trata como meros números em meio à selva de pedra.

Um velho slogan da época do 4º centenário da cidade, comemorado em 25 de janeiro de 1954, parece ainda povoar o imaginário social dessa grande metrópole: “São Paulo não pode parar”. De fato não pode, assim como nenhuma outra cidade pode parar. E se este antigo mantra paulistano no seu início referia-se à expansão urbana e econômica da cidade, hoje poderia ser mote para outro rumo, que levasse à reflexão acerca dos problemas de seu povo. Se fizermos uma pesquisa de opinião entre os paulistanos sobre qual seria o maior problema da cidade nos dias de hoje, teríamos uma multiplicidade de respostas: o trânsito, a (in)segurança pública, as enchentes, o transporte público, a saúde, a educação etc.

Isso é fácil de ser comprovado em qualquer pesquisa já feita pelos diversos institutos. Sem dúvida, tais pontos tão lembrados pelos paulistanos (e também pelos formuladores de políticas públicas) constituem graves problemas dessa grande metrópole. Entretanto, o maior de todos os problemas que São Paulo vivenciou ao longo de sua história e que, infelizmente, ainda vive nos dias de hoje é a desigualdade social. Esta, por sua natureza estrutural oriunda de uma lógica perversa de concentração de renda, é sem dúvida nenhuma a raiz dos demais males da cidade. Se São Paulo é de um lado a “locomotiva do Brasil”, conforme referência dos discursos mais bairristas, por outro é o local onde os abismos sociais são mais evidentes.

Um olhar mais atento durante um passeio pela Avenida Paulista, por exemplo, revela essa manifestação cruel da desigualdade social: em meio aos arranha-céus onde são tomadas grandes decisões quanto à economia do país, não é raro vermos um morador de rua, um desempregado, enfim, alguém que não sequer de um décimo dos benefícios que a massa restrita que freqüenta esses grandes edifícios tem ao seu dispor. Embora se referir a essa desigualdade social pareça “chover no molhado” por não trazer nada de novo, essa lembrança é importante à medida que este senso-comum tem sido secundarizado pelas administrações da cidade e até mesmo pela própria população. Tentar entender o porque dessa secundarização da questão social é tarefa para uma tese científica.

Um olhar social sobre a maior cidade da América do Sul
Talvez a própria onda de individualismo característica da pós-modernidade ajude a entender o porquê muitas vezes, ao olharmos um morador de rua na Paulista ou qualquer outro ponto da cidade, sintamos uma revolta, que, contudo, é rapidamente diluída pela lembrança de um compromisso ou pela pressa em vencer o trânsito e chegar em casa após um dia de muito trabalho. De repente esse individualismo pós-moderno também explique o fato de tentarmos culpar essas próprias pessoas marginalizadas pela sua condição: “ah, essas pessoas da periferia sofrem com as enchentes porque moram em áreas de risco, porque jogam lixo na rua” e por aí vai. Muitas vezes o olhar individualista cega o entendimento de que vivemos em coletividade e o problema que atinge alguém lá longe um dia pode chegar à nossa porta.

Entender e enfrentar essa desigualdade social são hoje o maior desafio para São Paulo. Segundo pesquisa recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) nada menos que 625 mil pessoas na Grande São Paulo vivem abaixo da linha de pobreza, o que significa que elas se sobrevivem todo mês com uma renda menor que R$ 140. Se de um lado São Paulo é o terceiro estado com menor nível de miséria (9,9% da população), por outro ainda é assombrado pelo fantasma da concentração de renda. Os números do IBGE mostram que os 10% mais pobres vivem com uma renda de até R$ 139,30 mensais, ao passo que os 10% mais ricos têm uma renda de R$ 4.229,77. No meio termo, 40% mais pobres vivem com renda de R$ 288,51.

Esses números dão apenas uma dimensão do quão profundo é o problema. Contudo, a dimensão mais contundente é dada pelo dia-a-dia, quando vemos pessoas que têm que fazer dupla jornada para terem uma renda extra no final do mês ou então que, desassistidas pelo poder público, têm que construir suas casas em locais de risco, por ser essa a sua única chance de moradia. Temos essa dimensão da desigualdade social quando vemos também as enormes filas nos hospitais da periferia da cidade ou então uma mãe que deixa o filho pequeno em casa, sozinho, porque tem que sair para trabalhar e não encontra vaga numa creche municipal para lá deixá-lo. O cotidiano, bem mais que as pesquisas, nos dá a exata dimensão do problema da desigualdade social na maior metrópole do país.

Sabemos que a democracia vai muito além do direito ao voto universal: ela também significa constituição de direitos. Acesso à moradia digna, saúde, educação, transporte, trabalho são direitos de todos os cidadãos, mas que infelizmente continuam sendo privilégio de uma minoria que os obtém, ainda assim, não pelo Estado, mas sim pelo meio privado. Então que se cumpra a democracia e que esses direitos sejam garantidos a todos. Certamente, não estamos tratando aqui de tarefa para um, dois ou quatro anos. Falamos de um trabalho que demandará décadas para dar resultados efetivos. No entanto, precisamos começá-lo. Necessitamos de governos em São Paulo que sejam de fato comprometidos com a questão social.

São Paulo é uma cidade complexa demais para ser administrada apenas com critérios gerenciais – sua gestão passa necessariamente pela compreensão de suas mais diversas especificidades, com um olhar também social e antropológico. Somente com a combinação de uma visão ideologicamente centrada no social e que coloca os ferramentais técnicos à disposição dessa concepção social (e não o contrário) conseguiremos vencer esse grande desafio. O grande desafio de uma grande cidade. Como foi dito, tarefa árdua, mas não impossível, especialmente em se tratando de uma cidade cuja grandiosidade nos desperta a certeza de que para ela nada é impossível. Parabéns, São Paulo!

Um comentário:

  1. Não moro em São Paulo,mas aqui no Paraná onde resido, muitos problemas sociais que foi abordado no texto também são presentes por aqui.A concentração de renda,e a presença de mendingos na grande Curitiba e bem grande.O Paraná assim como São Paulo precisa de governantes com olhar social,e o PT e outros partidos de esquerda são os que tem compromisso com o social,mas infelizmente o povo do Paraná na sua grande maioria e de direita.
    Uma questão que me intriga e a seguinte:Por que a maior parcela do povo pobre do Brasil se considera de direita? talvez a resposta de Frei Betto esteja certa:"Tem pessoas que apesar de ser pobre do pescoço para baixo,pensa com a ideologia da classe dominante do pescoço para cima."

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