Apesar de sempre levantar a bandeira de defesa das liberdades democráticas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso parece estar um pouco confuso acerca do conceito real de democracia. Na noite de terça-feira, 13, FHC foi um dos palestrantes que encerraram a 23ª edição do “Fórum da Liberdade”, em Porto Alegre (RS), um evento que surgiu com a idéia de fazer um contraponto ao Fórum Social Mundial. Organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE), o mote central desta edição do Fórum da Liberdade foi “Seis temas para entender o mundo”.
Os temas abordados neste fórum de Porto Alegre, que muito lembra no formato o famigerado Fórum do Instituto Milleniun, ocorrido em São Paulo no início de março, foram: capitalismo, socialismo, inflação, intervencionismo, investimento estrangeiro e política. Logo na abertura, o presidente do IEE, Luis Leonardo Fração, deixou claro que “quanto mais intervenção, mais desigualdade. Não existe sistema mais justo que o capitalismo”. Apenas por essa frase, proferida na abertura do evento na segunda-feira, já é possível imaginar tudo que foi discutido ali.
Fração também mostrou uma visão bastante preconceituosa com relação aos movimentos sociais e à própria democracia na América Latina: “o que enxergamos hoje na América Latina nada mais é do que o resultado da ignorância de suas populações e da escolha de líderes que buscam o poder para benefício próprio, ludibriando a população desinformada com promessas populistas que nunca são cumpridas por culpa dos ‘capitalistas sanguinários’. Toda vez que se ouve a palavra ‘social’, temos um sinônimo de algo por que pagamos mais do que deveríamos, sem que obtenhamos nada em troca. O futuro da América Latina está perdido nessa palavra. O Estado de Direito está condenado pela Justiça Social".
“Os que mais manipulam vêm de baixo”
Mas as pérolas desfiadas nesse tal Fórum da Liberdade não foram exclusividades do presidente do IEE. Isso porque o ex-presidente FHC deu também sua contribuição à discussão sobre democracia, durante o encerramento do encontro na terça-feira. FHC discursou durante quase meia hora para uma platéia de empresários, tendo sido recebido com muitos aplausos. Dividiu a mesa com o ex-presidente da Bolívia, Jorge Quiroga (2001-2002) e também com o presidente do Conselho de Administração da Gerdau, Jorge Gerdau Johannpeter.
Segundo FHC, “não nos deixemos enganar [sobre ser] possível existir formas de democracia que sejam consequência da manipulação pelos poderosos. Poderosos podem ter vindo até de baixo. Em geral os que mais manipulam vêm de baixo. Os ditadores, em geral, não são os que vêm de cima, vêm de baixo”. Neste ponto, o ex-presidente falta pouco a ignorar os séculos de domínio das elites na América Latina, inclusive no Brasil, jogando nas costas de lideranças populares a alcunha de “ditadores”. Ora, e os exploradores do escravismo ou da mão-de-obra barata seriam também “vindos de baixo”?
Aqui, o ex-sociólogo tem o seu discurso invalidado pela própria História, afinal de contas o processo de dominação popular e as próprias ditaduras foram mantidos e financiados pela elite, em todos os paises latino-americanos. E no Brasil não foi diferente: se FHC se prestasse a andar pelo país ao invés de desenvolver sua “pseudo-sociologia de gabinete” veria que os contrastes existentes hoje no país são frutos de uma dominação histórica das elites e não das camadas mais populares, como ele defendeu em sua palestra aos empresários gaúchos.
Nas entrelinhas, críticas aos movimentos sociais
FHC também declarou durante sua palestra que é altamente danosa à democracia a influência de um “partido ligado a sindicatos” nas decisões governamentais. “Imagina-se que isso pode ser capitalismo, um tipo de capitalismo burocrático, que faz com que a competição diminua e haja quem resolva politicamente esse pode, esse não pode, esse ganha e esse perde”, declarou o ex-presidente. Mais uma vez aqui vemos uma visão torta de FHC no que diz respeito à relação entre um partido de bases populares e o governo.
Neste sentido, o ex-sociólogo não reconhece os ganhos sociais que podem ser obtidos através do diálogo entre o governo e os movimentos sociais, especialmente os sindicatos. Sim, pois na sua concepção, um “partido ligado a sindicatos” não deve ter influência nas decisões do governo. Pela lógica, vemos que FHC defende um governo que esteja livre das influências dos movimentos sociais, ou seja, um governo que não estabeleça uma ponte de aproximação com esses movimentos.
Em um tom totalmente eleitoreiro, o ex-presidente ainda declarou que “a economia pode crescer muito bem através de organização econômica que não abra espaço para a competição e para a liberdade e que sufoque as liberdades individuais e as organizações partidárias. É isso que nós queremos? (...) Ou queremos viver num país decente?”. Aqui devemos destacar que o conceito de “decente” para FHC refere-se ao afastamento dos movimentos sociais do governo e a um sistema político que privilegie as visões da elite, como foi feito durante seu governo no Brasil.
Naturalmente, as falas de FHC arrancaram muitas palmas dos empresários que o assistiam. E não poderia ser diferente: afinal de contas, um evento que é aberto com a afirmação de que “não existe sistema mais justo que o capitalismo” não poderia terminar de outra forma, senão com a associação dos movimentos sociais e de lideranças populares a governos autoritários, como sublinhado pelo ex-presidente. Em um evento marcado por visões retrógradas e conservadoras, FHC foi a cereja do bolo.
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