domingo, 21 de novembro de 2010

Os 10 anos do Plano Fênix: renascimento da Argentina pós neoliberalismo de Menem

O período de Carlos Menem à frente do governo da Argentina foi marcado por uma política econômica de caráter neoliberal, muito semelhante àquela adotada por Fernando Henrique Cardoso aqui no Brasil. Em meio a uma grande crise econômica, marcada notadamente pela hiperinflação e também pela recessão, o ministro das Finanças do governo Menem, Domingo Cavallo, implementou o chamado Plano Cavallo, que nada mais era do que uma aplicação do receituário ortodoxo do FMI e que introduziu uma série de reformas na Argentina, sendo que a principal foi a adoção da paridade entre o peso (moeda local) e o dólar.

Qualquer semelhança com a política econômica adotada por Pedro Malan, ministro da Fazenda do governo FHC, aqui no Brasil não é mera coincidência. A combinação explosiva da convertibilidade, do câmbio fixo e do crescente endividamento do país (por conta das pressões cambiais no cenário externo) acabou por conduzir a Argentina a uma situação insustentável. Foi neste contexto, que há dez anos, um grupo de economistas heterodoxos se reuniu para debater a política econômica de Menem-Cavallo e propor uma saída heterodoxa para a crise que se instalava na Argentina. Estava lançado o chamado Plano Fênix, um conjunto de propostas alternativas ao pensamento neoliberal que poderia auxiliar a Argentina a superar os efeitos nefastos da crise econômica.

Neste domingo, 21, o jornal argentino Página 12 publicou um artigo muito interessante do economista Norberto Gonzalez, que foi um dos formuladores do Plano Fênix. O artigo faz uma reconstrução histórica do período no qual foi instalado o Plano e destaca suas principais contribuições para a recuperação econômica da Argentina ante o fracasso do receituário econômico adotado por Menem-Cavallo. A leitura do texto, reproduzido a seguir, é interessante especialmente se a fizermos comparando com a política econômica de FHC-Malan aqui no Brasil. Isso nos ajuda a entender o que poderia ter acontecido com o Brasil se FHC insistisse na manutenção da paridade por aqui.

Renascimento
No momento em que se criou o Plano Fênix, a Argentina atravessava um período de retrocesso e de desorientação nas idéias com as quais conduzia a sua política econômica. Antes da política econômica adotada por Martínez de Hoz (ministro das Finanças entre 1976 e 81, no governo de Jorge Rafael Videla) e da convertibilidade [de Menem-Cavallo], a Argentina havia alcançado progressos importantes. O país integrava um grupo de países em desenvolvimento relativamente avançados. Acompanhava o processo de desenvolvimento do Brasil e estava se aproximando de alguns países asiáticos e da Europa Oriental. Nos aspectos econômicos e sociais, vivia os contrastes próprios de um país em desenvolvimento: registrava atrasos em determinados aspectos e em outros apresentava avanços claros.

A Argentina vinha registrando um forte desenvolvimento da indústria de bens de consumo duráveis e também de bens intermediários, como metais e produtos químicos, além da indústria de bens de capital. Empresas radicadas na Argentina podiam vencer licitações na própria Argentina ou ainda em outros países da América Latina, para fornecer, por exemplo, equipamento elétrico pesado para produção de eletricidade, competindo com empresas de países desenvolvidos, como Alemanha e França. Produzia também outros tipos de bens de capital, como máquinas-ferramentas, maquinário agrícola e equipamentos para indústria leve. Este nível de desenvolvimento intermediário foi alcançado através de governos de distintos signos políticos porque desde os anos 30, quando foi criado o Banco Central e teve início a política de substituição das importações, a política econômica teve uma certa continuidade, assemelhando-se ao que poderia se chamar de “política de Estado”.

Toda essa situação sofreu uma forte deterioração com a política econômica de Martínez de Hoz. Durante o seu período de vigência, a especulação financeira tomou o lugar do desenvolvimento e o câmbio desfavorável culminou com a convertibilidade (ou paridade) aplicada por Menem-Cavallo. No início, a convertibilidade foi necessária para solucionar a hiperinflação e a perda de controle do governo sobre a economia do país. Uma situação similar ocorreu no Brasil, que também aplicou um programa parecido ao da Argentina. Contudo, o Brasil manteve essa política durante muito poucos anos, até a inflação cair para um nível contrável, e ao final desse período mudou sua política econômica e voltou a priorizar o crescimento econômico e o emprego intensivo dos recursos produtivos. A Argentina, ao contrário, manteve essas medidas rigidamente durante todo o decênio dos anos 90. Essas políticas tiveram consequências muito desfavoráveis:

1) Destruíram muitas das indústrias já existentes e fizeram o país perder espaço em mercados externos nos quais já estava competindo. A abertura sem critérios da economia e o peso sobrevalorizado provocaram um grau de retrocesso no desenvolvimento industrial;

2) Fizeram passar para mãos estrangeiras inúmeras empresas que até então eram nacionais;

3) Endividaram fortemente o país. A dívida se acumulou muito acima de valores aceitáveis: a dívida externa alcançou enormes magnitudes. Com isso, o país passou a ser muito mais dependente de seus credores e perdeu o controle de sua própria política econômica;

4) Aumentaram fortemente as desigualdades sociais, em particular a pobreza e o desemprego.

Origens
As idéias sobre política econômica que predominavam na Argentina, ligadas à convertibilidade, tinham um forte signo ortodoxo. Na prática, o enfoque era um só e não se discutia nem a vigência da convertibilidade nem de outras alternativas de políticas de desenvolvimento e de política econômica. Nestas circunstâncias é que foi criado o Plano Fênix. Um grupo de professores da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires avaliou que era necessário fazer um replanejamento profundo da estratégia de desenvolvimento e da política econômica do país, dando lugar a outros enfoques menos ortodoxos e mais realistas, para sair do afogamento intelectual no qual o país se encontrava.

Surgiu a iniciativa de organizar um diálogo que discutisse tanto os fundamentos da política oficial quanto alternativas de ação (...). Em uma das primeiras reuniões se mencionou a ave Fênix, que renasceu das cinzas. Nos pareceu que, de forma similar à Fênix, neste caso era necessário fazer com que a Argentina renascesse de suas cinzas, erguendo-se da prostração que a havia conduzido a convertibilidade e retomando a senha para o progresso. Por isso chamamos esse exercício de Plano Fênix. Este plano propunha um objetivo mais distante, menos imediato, porque em um período curto de tempo um grupo de professores trabalhando a título pessoal e em tempo parcial, sem apoio para processar as informações e realizar análises mais detalhadas, não poderia elaborar completamente um plano de desenvolvimento.

Mas se podia colocar em marcha o esforço para avançar através deste Plano e ir obtendo conclusões que já desde o princípio permitiriam alterar o eixo da discussão sobre estratégia de desenvolvimento e de política econômica na Argentina.

Etapas
No desenvolvimento da Argentina a partir dos primeiros anos do século 21, podería-se distinguir três etapas:

1) Uma primeira etapa, que poderia ser chamada de “reativação”, durante a qual se recuperou o nível da atividade econômica que o país havia alcançado antes da crise, usando a plena capacidade produtiva que o país tinha, que estava subutilizada;

2) Uma segunda etapa, de crescimento da capacidade produtiva sobre linhas similares às já existentes, ampliando o capital já instalado e penetrando mais profundamente em mercados já conquistados;

3) Uma terceira etapa, de desenvolvimento de novas atividades mais avançadas, com mudança estrutural. Nesta etapa de desenvolvimento propriamente dito, as indústrias de bens intermediários metálicos e químicos e as produtoras de bens de capital deveriam ter um papel de protagonista. Estas novas atividades facilitariam a obtenção de um desenvolvimento tecnológico e a conquista de mercados para bens mais sofisticados. Isto também implicava no desenvolvimento de tecnologias mais avançadas e uma formação de mão-de-obra científica e técnica apropriada a estas novas etapas.

Outro foco de uma nova estratégia era mover-se rumo a uma distribuição de renda menos desigual, com a redução da pobreza e melhoria da qualidade de vida dos setores de baixa renda. Essas etapas presumivelmente têm algum grau de sobreposição. Mas, logicamente, nas primeiras décadas das novas políticas, há predominância da primeira das três etapas, que chamamos de recuperação. O país iria gradualmente evoluir para um nível maior de crescimento e investimento e, especialmente, de transformação da estrutura econômica e social. Desde que começaram ser aplicadas estas novas medidas, foram realizados progressos significativos quanto à recuperação do nível de utilização da capacidade produtiva existente e a capacidade de produção ampliou-se em linhas como as anteriormente existentes.

Em menor escala, foram feitos progressos na criação de novos setores econômicos e em mudanças estruturais do desenvolvimento argentino em comparação aos padrões históricos. À medida que se avança este processo, o componente de desenvolvimento de novas capacidades produtivas, a conquista de mercados externos para novos setores produtivos, a mudança tecnológica e a formação de uma nova mão-de-obra com habilidades mais sofisticadas têm que adquirir um protagonismo crescente nas estratégias de desenvolvimento e nas atividades do Plano Fênix.

Contribuições
O Plano Fênix, como se afirmou, foi formado desde o início por um grupo de professores da Faculdade de Economia. Também se reconheceu desde o início que era necessário ter um diálogo com pessoas com conhecimento especializado em áreas que forem necessárias para definir estratégias realistas. Achamos que era necessário nos cercarmos também de técnicos do setor público e privado que lidavam com a política industrial e inovação tecnológica, a conquista de novos mercados, as relações económicas com os nossos principais parceiros económicos (América Latina, Europa, EUA, Ásia e outros países em desenvolvimento). Por este motivo, convidamos outros profissionais para as reuniões do Plano Fênix.

Qual a peculiaridade do caso argentino? A tarefa de levantar idéias sobre a estratégia de desenvolvimento de um país de uma forma realista e correta sempre foi muito interessante e complexa. Mas no caso da Argentina, é ainda mais difícil agora do que antes do revés causado pela política de conversibilidade: antes desse retrocesso, o país teve uma experiência histórica do seu próprio progresso e também teve a experiência de países similares na América Latina e Ásia. Agora, esses outros países continuaram a progredir e superando etapas. Nós, com a conversibilidade, nos tornamos num caso especial de desenvolvimento truncado, no qual é mais difícil enxergar onde devemos colocar o nosso esforço e como devemos manejá-lo, com a combinação de realismo e de decisão que que nos permita mover tão rápido e tão bem quanto seja possível.

Neste contexto, a contribuição do Plano Fênix pode ser importante. Um grupo de peritos independentes, sem vínculos com interesses especiais ou lobistas, que visa dar uma contribuição intelectual sólida e honesta, está em situação favorável para contribuir com idéias e discutir os benefícios do desenvolvimento alternativo e da política econômica. Esta é a tarefa que está fadado o Plano Fênix. Embora o foco principal destas breves notas tenha sido as origens do Plano Fênix, como dito acima, das três fases mencionadas, a primeira, de reativação, registrou progresss importantes e está bastante avançada. A segunda, de ampliação da capacidade produtiva em atividades já existentes, requer a aplicação de políticas de apoio importantes mas menos difícis de desenhar à medida que está se transitando em um território relativamente mais conhecido; de qualquer maneira, é necessário manter um esforço apropriado para continuar o progresso alcançado e nisso o Plano Fênix pode realizar uma tarefa útil.

Os mecanismos e medidas para apoiar a expansão da capacidade produtiva existente e as taxas de aumento da penetração de mercado são similares àquelas que foram implementadas. É sempre necessário inovar, mas esta inovação não é tão difícil. Onde se enfrenta o desafio mais importante e mais complexo é no desenvolvimento de novos setores e na superação das desigualdades sociais pendentes. Como já foi referido, nestes aspectos, os esforços dos membros do Plano Fênix podem ser mais eficazes se forem complementados com a participação de profissionais que estão atacando esses problemas hoje. Um diálogo sistemático e com grau adequado de profundidade com aqueles que administram as políticas de apoio às atividades não tradicionais, principalmente as industriais, científicas e tecnológicas, para conquistar novos mercados e superar os problemas sociais, bem como com os responsáveis por estas questões no setor privado podem ser um foco importante nestas atividades.

Um aspecto que merece atenção especial é o efeito introduzido pela presença dominante de novos países como a China e a Índia, que oferecem novas oportunidades e mercados importantes, mas também e, sobretudo, colocam novos desafios, já que são concorrentes de grande peso, pagam salários mais baixos e possuem políticas definidas para melhorar a competitividade.

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