sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Memorial aos que lutaram por um Brasil livre resgata significado da nossa democracia


Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis
(Bertold Brecht)

A inauguração do Memorial “Pessoas Imprescindíveis”, em homenagem a Stuart Edgar Angel Jones, morto pela ditadura militar em 1971, foi sem dúvida um ato de celebração da democracia no Brasil. O uso dessa palavra – democracia – é tão recorrente em nosso dia-a-dia que às vezes não nos damos conta do seu real peso, do seu significado. Como bem disse o deputado federal José Genoino (PT-SP), durante um seminário realizado em maio deste ano, “democracia seria uma palavra tênue, vã, sem significado, se ela não tivesse sido construída com guerra, com mortes, com torturas, com exílio e com muito sofrimento”.

E é exatamente por esta razão que atos como esse que ocorreu na quinta-feira, 9, no Rio de Janeiro, são importantes para que nunca se esqueça o preço pago pela reconquista da democracia no Brasil. O memorial inaugurado pelo ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, é, neste sentido, muito mais que uma homenagem ao jovem Stuart Angel, constituindo-se numa homenagem a todos aqueles que lutaram contra a ditadura militar e foram barbaramente torturados, tiveram suas vidas ceifadas e, muitas das vezes, não tiveram nem o direito póstumo de serem velados e enterrados por seus familiares.

Também presente no evento, o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, avaliou, em tom emocionado: “estamos celebrando aqui a memória de todos aqueles que lutaram e caíram. Fizemos parte de uma juventude que errou. Os que não lutaram nos cobram os erros, os que lutaram pela metade nos cobram os erros, os que esperaram a ditadura acabar nos cobram os erros. Mas essa juventude maravilhosa não errou em duas coisas: não apoiou a ditadura e não ficou esperando o carnaval chegar para dizer que tinha lutado contra a ditadura”.

Conhecer o passado para não repetir erros
Outra fala muito importante – e contundente – foi a de Cid Benjamim, um dos organizadores do seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969: “um país que não conhece o seu passado está fadado a repetir os erros. Onde estão os desaparecidos, onde estão seus corpos? Isso são perguntas que têm de ser feitas, principalmente para que a sociedade tome consciência da barbaridade que foi perpetrada e crie anticorpos para que isso não se repita”. Conhecer o passado para não repetir os erros: esta é a importância fundamental da abertura dos arquivos da ditadura militar que, em parte, já está sendo feita.

No final de 2005, o Presidente Lula determinou, por meio de decreto, a transferência dos arquivos de órgãos extintos e ligados ao regime militar – o Conselho de Segurança Nacional, Comissão Geral de Informações e o Serviço Nacional de Informações – para o Arquivo Nacional, a fim de serem catalogados e disponibilizados para consulta pública. Isso sem dúvida foi um passo muito importante para a democratização do acesso à informação e à verdade. Desde então, pouco a pouco o público toma conhecimento dos arquivos da ditadura, que reúnem desde fichas de pessoas consideradas “subversivas” até relatos de torturas feitos durante depoimentos de presos políticos no Tribunal Militar.

Esse direito à memória e à verdade é fundamental para a própria valorização da democracia, pois só a partir do momento que o cidadão brasileiro tem conhecimento real do alto custo da democracia é que ele passa a valorizá-la de forma mais ampla, não se deixando seduzir por ameaças contra ela. Dessa maneira, a luta pela abertura ampla dos arquivos da ditadura deve ser contínua, a fim de que se tenha a dimensão exata do que aconteceu no Brasil nos anos de chumbo e, como dito por Cid Benjamim, se criem “anticorpos” para evitar que isso aconteça novamente.

Abaixo, o Boteko reproduz trecho da carta escrita pelo prisioneiro político Alex Polari de Alverga, em janeiro de 1979, quando ainda se encontrava preso no Presídio Frei Caneca, no Rio de Janeiro. Em 1971, Polari presenciou a morte de Stuart Angel na base aérea do Galeão e, posteriormente, enviou diversas cartas à mãe de Stuart – a estilista Zuzu Angel – relatando os detalhes da morte de seu filho. Esse relato de 1979 foi escrito para o livro “Desaparecidos Políticos”, de organização de Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa.

Reflexões de Alex Polari oito anos após a morte de Stuart
“Desaparecimento. Essa é estranha categoria que surgiu por força do terror repressivo implantado pelo regime nos últimos anos. Eufemismo que designa os companheiros assassinados e cuja morte jamais foi assumida pela ditadura militar, cujos corpos jamais foram entregues às respectivas famílias, tudo levando a crer que hoje se encontram repousando no fundo dos oceanos.

Até hoje é difícil falar dos nossos mortos sem que a emoção aflore, misturada com um misto de grande tristeza, saudade, ódio de classes e uma certa perplexidade. Perplexidade até certo ponto descabida, fruto de uma ingenuidade nossa, uma incapacidade mesmo de imaginar concretamente o furor bestial, o ódio de classe que o inimigo nos devotava – e nisso, talvez, eles estivessem de um modo geral melhor preparados do que nós. As cenas de pressões psicológicas, achincalhes morais e sexuais, torturas, sadismos, assassinatos de companheiros, farsas nos tribunas, etc, são cenas que dificilmente sairão da nossa memória. Assim como jamais será apagado o espetáculo das piruetas nos paus de arara, amperagem rasgando a carne e, à noite, a tentativa desesperada de conciliar o sono e o cansaço com os gritos dos companheiros, o medo do trinco de ferro se abrir e sermos conduzidos mais uma vez às salas da tortura.

Era um momento de isolamento, de derrota e isso pesava enormemente na situação a ser enfrentada, nos obrigando a recorrer a todas as reservas a fim de tentar cada vitória contra o algoz por mais diminuta que fosse. Era essa vida nas prisões, à época do chamado milagre brasileiro, durante a ditadura de Médici. Foi durante esse período que eu presenciei a morte de Stuart Angel Jones, militante do MR-8. Entre tantas outras cenas macabras que tive a oportunidade de ver, essa foi fora de dúvidas a que mais me impressionou e influenciou em todo o meu processo de tortura. Pela carga muito intensa de envolvimento que tive com o caso, com a relação que este teve com a minha própria queda e cuja reflexão foi fundamental para eu entender uma série de processos – como homem, como militante e como uma pessoa torturada.

As imagens até hoje permanecem bem nítidas. Distanciadas pelo tempo, mas bem nítidas. É impossível numa comunidade de prisioneiros que, de vez em quando, particularmente à noite não repassemos essas lembranças, não extraiamos delas novas experiências, valores, exemplos, que nos ajudem a nos construir como gente, superar nosso despreparo, entender a luta que travamos e o que se coloca pela frente. Falar agora, oito anos após, de um assassinato que eu presenciei na prisão é retomar coisas repletas de névoa, é descer até aquela noite, revisitar aquelas salas, sentir aquele cheiro, ouvir aqueles gritos, aquelas vozes. Nada disso vai se apagar da nossa cabeça e é bom que não se apague. (...)

Mesmo hoje, oito anos depois, as cicatrizes ainda não estão definitivamente fechadas. A repressão se abateu sobre nossa geração de maneira implacável. Prendeu, torturou, enlouqueceu, matou gente, calou vozes, impôs o medo. Essas marcas ficam, não adianta ignorar as feridas, pois elas fazem parte da gente. Já houve quem dissesse que os mortos sempre retornam. Retornarão sem dúvida, mesmo que seus corpos permaneçam apodrecendo no fundo dos oceanos. Até lá, devemos firmar um sólido compromisso para o seu resgate. E isso se fará reescrevendo a história desses tempos. Será a nossa vitória sobre aqueles que por tanto tempo foram os instauradores do terror e os guardiões das trevas.” (Alex Polari, 13 de janeiro de 1979)

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