domingo, 18 de abril de 2010

Marketing político travestido de jornalismo

Dizer que a imprensa brasileira é imparcial soa tão falacioso – e ingênuo – quanto afirmar que a Terra é plana. Ainda assim, muitos veículos de comunicação insistem em se apresentar com uma suposta “neutralidade” que todos sabemos que eles não possuem. A revista Veja, por exemplo, transformou-se, há muito tempo, em um folhetim político das forças do conservadorismo, da direita e da estagnação: basta lembrar o papel assumido pelo semanário nas eleições de 1989, quando fez campanha escancarada para o então candidato Fernando Collor de Mello.

Apresentando Collor como o “caçador de marajás”, capaz de solucionar todos os problemas do Brasil, a Veja, em parceria com a rede Globo, teve papel decisivo para levar Collor ao poder. E de lá para cá as manobras tendencionistas da revista, preservadas sob o manto de um suposto “jornalismo isento”, têm sido cada vez mais freqüentes. Naturalmente, a revista da editora Abril não poderia mudar a regra na disputa eleitoral deste ano: afinal de contas, mais do que nunca a Veja está empenhada em garantir a eleição dos demo-tucanos, que estão longe da Presidência da República desde 2002 quando, para desgosto da revista, Lula saiu vitorioso nas eleições.

Com este propósito claro de pavimentar a eleição do tucanato, a capa desta semana da Veja traz uma reportagem com o pré-candidato do PSDB à Presidência da República, José Serra, com o título de “Serra e o Brasil pós-Lula”, repetindo a apresentação usada pelo tucano de que ele é o “pós-Lula” e não o “anti-Lula”. Como subtítulo, uma frase do próprio Serra, que deixa clara toda a intenção da revista com a tal reportagem: “Eu me preparei a vida inteira para ser Presidente da República”. Da foto da capa às entrelinhas da matéria, tudo cheira a um ardiloso marketing político da revista em favor da candidatura tucana.

Imagem
A sabedoria popular diz que uma imagem vale mais do que mil palavras: e a Veja parece concordar. Na capa da edição de 21 de abril, estampa a foto de um Serra sorridente, que exala simpatia, serenidade e doçura. O Serra da capa da Veja encarna a figura do pai de família, do típico “cidadão de bem” que trabalha arduamente, de sol a sol, pelo seu país e que, diante dos problemas, não tem medo: com um sorriso no rosto enfrenta todas as adversidades e as supera. Ao contrário de 1989, quando carisma não era o problema para Collor e a Veja aproveitou para somar a esse carisma do candidato o rótulo de “caçador de marajás”, a revista trabalhou, na edição desta semana, para transformar Serra em um candidato “carismático”.

Afinal de contas, o Serra da capa da Veja em nada lembra o ex-governador de São Paulo, que até poucos dias carregava um semblante pesado, sisudo. O candidato que a revista traz estampado em sua capa nem parece aquele que há pouco menos de um mês se recusou a negociar com professores grevistas no estado de São Paulo, deixando nas mãos da Polícia Militar a “solução” do impasse. O tucano exposto na capa da Veja desta semana é o mais bem acabado produto do marketing político: por trás de uma imagem, todo um conceito de “homem público” e de “político ideal” para administrar o Brasil nos próximos quatro anos. A carranca que sempre ostentou deu um lugar a um sorriso “simpático” que deve estar na face do candidato até outubro.

De fato, a Veja seguiu à risca a regra do marketing político de que o eleitor é sensível às emoções e sensações e tratou logo de suavizar as expressões de Serra, como se faz em um comercial de amaciante de roupa ou de creme dental. Mas não foi somente na capa que a Veja cuidou de escolher as imagens para ilustrar o candidato: no miolo da revista, uma foto de Serra, sentado em sua biblioteca pessoal, lendo um livro qualquer. O que o (e)leitor pensaria ao ver tal imagem? “Ora, além de simpático, esse é homem é culto! Quantos livros! Ele deve ser um bom administrador”! E assim se constrói uma imagem, totalmente distinta da realidade, que parece ficar cada dia mais longe, pelo menos das páginas da revista Veja.

Emoções
Naturalmente, o marketing político da Veja não se restringiu à imagem do candidato: era preciso um texto que “mexesse” com o (e)leitor. Neste sentido, a revista apostou em explorar as emoções de quem estava do outro lado, lendo cada uma daquelas frases. Primeiramente, Serra foi apresentado como um político “conciliador”: assim como todo “cidadão de bem” deve ser, ele não gosta de brigas, de disputas ou de picuinhas e por isso foi “o maior responsável pela unificação do partido” em torno de sua candidatura. Neste ponto, a fama do Serra implacável, metódico, que não gosta de ser contrariado, também parece passar longe das páginas da Veja.

“Desta vez, a situação é outra. Serra impôs sua ascendência de forma natural. Depois de passar pelo governo Fernando Henrique, pela prefeitura e pelo governo de São Paulo, ele é hoje reconhecido por seus pares como o mais preparado entre os tucanos para enfrentar o desafio de presidir o país”, destaca a revista, ressaltando aí, além do caráter conciliador do tucano, o seu “preparo” para o desafio de conduzir o Brasil nos próximos anos. A revista procura discretamente reforçar o currículo de Serra, como quem diz: “olha, ele já foi tudo isso, merece sua confiança”. E assim vai criando a figura de um Serra legendário, que muito lembra a construção usada para o candidato “caçador de marajás” de 21 anos atrás.

Apostando no lado místico do brasileiro, a Veja também não podia deixar de lado essa faceta importante dos seus (e)leitores. Procurando mostrar aos (e)leitores que Serra é “gente como a gente”, a Veja dispara:” José Serra, dizem os que o conhecem, é do tipo que se pauta sempre pela razão. Há, no entanto, pelo menos uma irracionalidade que o fascina: a astrologia. Sim, o tucano adora ler horóscopo”. Neste ponto dá para imaginar a dona de casa da classe média, que lê Veja, gritando para o seu esposo: “olha, bem, o Serra acredita em horóscopo também! Nossa, como é simpático”. A “cereja do bolo”, contudo, é a própria previsão de um astrólogo consultado pela revista: “no que depender dos astros, José Serra está eleito”.

Lógica forçada
Um marketing político que se preza também tem que fornecer ao (e)leitor elementos ligados à lógica para justificar a escolha por determinado produto, ou melhor, “candidato”. Fazendo sua lição de casa, a Veja constrói um cenário de favoritismo para Serra, “criando” todas as condições para fazer parecer que ele é o candidato fadado à vitória nas eleições de outubro. “Embora esteja bem posicionado nas pesquisas, o candidato tucano tem a clara noção de que o mapa eleitoral brasileiro neste momento é muito mais favorável para ele nas regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste do que no Norte e no Nordeste, onde sua principal adversária, Dilma Rousseff, deve levar a melhor”, diz a Veja.

Logo abaixo, a revista emenda a seguinte pérola: “no Nordeste, o tucano subirá em palanques com probabilidade de vitória em seis dos nove estados”. De onde a Veja tirou esse cálculo, somente os editores da revista devem saber, pois todas as pesquisas de intenções de voto dão uma ampla margem de favoritismo para a pré-candidata do PT, Dilma Rousseff, na região. “Já no Sul e no Sudeste, os ventos não poderiam ser melhores para o tucano. Menos por causa da montagem dos palanques estaduais do que pela sua influência na região. Em São Paulo, por exemplo, estado que ele governou nos últimos três anos, Serra espera impor uma respeitável dianteira de 4 milhões de votos sobre Dilma”, acrescenta a revista.

Finalizando a sua obra de marketing político, a Veja pincela: “a era pós-Lula, que virá com Serra ou com Dilma, celebrará e colherá os frutos de 25 anos de redemocratização e dezesseis anos de estabilidade monetária. Tem, portanto, todos os elementos para ser uma primavera do desenvolvimento. Com Serra, ela poderá vir com a vantagem adicional da alternância de poder, seiva da democracia, sem a qual se corre o risco de ver vicejar o voluntarismo dos governantes, a corrupção da máquina do estado e o fenecimento das novas ideias. É em busca dessa oxigenação no poder que os tucanos, com Serra à frente, alçaram voo na semana passada. E agora estão voando juntos”.

O que se pode constatar após a leitura da obra de marketing político da Veja, travestida na roupagem de uma matéria de cunho jornalístico, é que qualquer semelhança entre a “reportagem” e uma produção hollywoodiana não terá sido mera coincidência. O Serra apresentado pela revista em nada lembra o pré-candidato que até poucos dias atrás tratava greve de professores como assunto de polícia ou então que deixava verba do SUS rendendo juros em aplicações no mercado financeiro, enquanto faltavam remédios nos postos de saúde de todo estado de São Paulo. Resta acreditar na inteligência, bom senso e boa memória dos eleitores.

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