sábado, 11 de dezembro de 2010

Os 100 anos do Poeta da Vila: a "entrevista póstuma" de Noel Rosa ao Pasquim, em 1973

Autocaricatura de Noel Rosa

Há exatos 100 anos, numa família de classe média de Vila Isabel, bairro boêmio da Zona Norte carioca, nascia Noel Rosa, que viria a ter enorme participação no processo de consolidação do samba no Brasil. Martinho da Vila, nas estrofes do seu magistral samba enredo composto para a escola de samba Unidos de Vila Isabel, que prestou uma homenagem ao “Poeta da Vila” no carnaval de 2010, resume muito bem a vida de Noel: “a sua vida foi de notas musicais / seus lindos sambas animavam os carnavais / Brincava em blocos com morenos e mulatas / Subia os morros sem preconceitos sociais”.

De fato, o boêmio Noel Rosa, que desde criança se apaixonou pela música, mas que no final da adolescência resolveu fazer faculdade de Medicina, deu inúmeras contribuições ao samba, das quais destacaremos duas. Primeiro, Noel contribuiu para acabar com o preconceito contra o samba: naquela época – nos idos da década de 20 – o samba ainda não era reconhecido como gênero musical e era marginalizado, já que as rodas culturais o viam como “música do morro” e “música de preto”. A despeito de tudo isso, Noel subia no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, para ali participar das rodas de samba e interagir com a comunidade.

Ao descer para o asfalto, Noel trazia consigo aquele ritmo contagiante, que pouco a pouco acabou agradando aos que outrora “torciam o nariz”. Além disso, no final dos anos 20, já com o grupo dos Tangarás, Noel Rosa foi o responsável por introduzir o samba nas rádios do Rio de Janeiro, contribuindo decisivamente para que o ritmo fosse reconhecido por todos como um gênero musical. Noel viveu da música e da paixão por Ceci – a “Dama do Cabaré” – que conheceu no Cabaré Apolo, na Lapa. A vida boêmia de Noel custou sua saúde: com apenas 26 anos de idade, em 1937, o Poeta da Vila se foi, mas deixou sambas que entraram para a História da nossa música.

Abaixo, reproduzimos uma interessante “entrevista póstuma com Noel Rosa”, feita pelo jornalista Sérgio Cabral e que foi publicada na edição de número 201 do Pasquim, em maio de 1973. Boa leitura!

Trinta e seis anos depois de sua morte (morreu dia 4 de maio de 1937), procurei Noel Rosa para uma entrevista.

- Eu não tenho nada a dizer. O que você quiser saber está na minha obra – disse ele modestamente.

O resultado foi esta entrevista. Se não estiver boa, não ponham a culpa exclusivamente no repórter. Afinal, o entrevistado não dá entrevista há, pelo menos, 36 anos
”. (Sérgio Cabral)

O PASQUIM – Você um cara cheio de problemas de saúde, não saía dos bares, bebendo a noite inteira, batendo papo, etc.

NOEL ROSA – Saber sofrer é uma arte. E pondo a modéstia de parte, eu sei sofrer.


O PASQUIM – Então você sofreu pra burro.

NOEL ROSA – Mesmo assim não cansei de viver.


O PASQUIM – Mas as mulheres de vez em quando, te faziam sofrer mais ainda.

NOEL ROSA – Quem sofreu mais do que eu não nasceu.


O PASQUIM - Uma das suas mulheres foi até visitá-lo, quando você esteve doente. Mas você estava fora. Por que ela foi lá?

NOEL ROSA – Porque pretendia somente saber qual era o dia que eu deixaria de viver.


O PASQUIM – Você sofreu várias decepções mas continuou amando.

NOEL ROSA – Nunca se deve jurar não mais amar a ninguém.


O PASQUIM – Quer dizer que você não tem nada contra o amor.

NOEL ROSA – Quem fala mal do amor não sabe a vida gozar.


O PASQUIM – Mas você, de vez em quando, fala mal da mulher.

NOEL ROSA – A mulher mente brincando e, às vezes, brinca mentindo.


O PASQUIM – Explica isso melhor.

NOEL ROSA – Quando ri está chorando e quando chora está sorrindo.


O PASQUIM – Você sabe se a Betty Friedman o conhecesse teria uma imensa bronca de você que é contra a mulher trabalhando.

NOEL ROSA – Todo cargo masculino, seja grande ou pequenino, hoje em dia é pra mulher.


O PASQUIM – Mas o que é que atrapalha isso, Noel?

NOEL ROSA – E por causa dos palhaços, ela esquece que tem braços. Nem cozinhar ela quer.


O PASQUIM – Mas os direitos são iguais.

NOEL ROSA – Os direitos são iguais, mas até nos tribunais a mulher faz o que quer.


O PASQUIM – Então não são tão iguais assim.

NOEL ROSA – Pois o homem já nasceu dando a costela à mulher.


O PASQUIM – Essa história não é bem assim, não. É preciso discutir.

NOEL ROSA – Mas não quero discussão.


O PASQUIM – Da discussão sai a razão.

NOEL ROSA – Mas às vezes sai pancada.


O PASQUIM – Você gosta mesmo é de samba, não é?

NOEL ROSA – O mundo é um samba em que eu danço sem nunca sair do meu trilho.


O PASQUIM – Você acha mesmo o samba um troço importante?

NOEL ROSA – Exprime dois terços do Rio de Janeiro.


O PASQUIM – Tenho vários amigos que não gostam de samba, querem voar mais alto.

NOEL ROSA – Mas quem voa em grande altura leva sempre grande queda.


O PASQUIM – Não fale assim, Noel, os caras podem se chatear.

NOEL ROSA – O que eu falo é bem pensado. Não receio escaramuça. E que aceite a carapuça quem se sente melindrado.


O PASQUIM – Assim como você está falando, o que é que quer que eles pensem de você?

NOEL ROSA – Que entre nós o páreo é duro.


O PASQUIM – Mas vão acabar seus inimigos.

NOEL ROSA – Meus inimigos, que hoje falam mal de mim, vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.


O PASQUIM – Pelo que vejo, não se pode falar mal do samba perto de você.

NOEL ROSA – O samba é a corda e eu sou a caçamba.


O PASQUIM – Você não tem medo de ninguém?

NOEL ROSA – Sou independente como se vê.


O PASQUIM – Independente? Está rico?

NOEL ROSA – Não consigo ter nem pra gastar.


O PASQUIM – Ou seja: está durão.

NOEL ROSA – Já estou coberto de farrapo, eu vou acabar ficando nu. Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou.


O PASQUIM – Você não vai porque está com medo dos malandros do samba.

NOEL ROSA – Não tenho medo de bamba. Na roda do samba, eu sou bacharel.


O PASQUIM – Como é que é esse negócio de bacharel?

NOEL ROSA – Quando me formei no samba recebi uma medalha.


O PASQUIM – Você vive em tudo que é samba, não é?

NOEL ROSA – A polícia em todo canto proibiu a batucada. Eu vou pra Vila onde a polícia é camarada.


O PASQUIM – O samba em Vila Isabel é de noite ou de dia?

NOEL ROSA – O sol da Vila é triste. Samba não assiste porque a gente implora: “Sol, pelo amor de Deus, não venha agora que as morenas vão logo embora”.


O PASQUIM – Mas tem mais samba em outros lugares, Noel.

NOEL ROSA – Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz.


O PASQUIM – E a Vila, como é que fica nisso?

NOEL ROSA – A Vila não quer abafar ninguém. Só quer mostrar que faz samba também.


O PASQUIM – Conforme você disse, o samba exprime dois terços do Rio de Janeiro.

NOEL ROSA – Mas tenho que dizer: modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila.


O PASQUIM – Assim não pode, Noel. Com esta banca é melhor a gente acabar a entrevista.

NOEL ROSA – Ofereço meu auxílio. Passe bem, vá pela sombra.


O PASQUIM – Está me mandando embora, Noel?

NOEL ROSA – Não mandei você embora porque sou benevolente.


O PASQUIM – Sabe que se você dissesse isso para certos jornalistas, eles entenderiam como um desafio para briga?

NOEL ROSA – De lutas não entendo abacate.


O PASQUIM – Ué, eu soube que você já lutou profissionalmente.

NOEL ROSA – Cheguei até ser contratado para subir em um tablado para vencer um campeão.


O PASQUIM – E daí, venceu?

NOEL ROSA – Mas a empresa, pra evitar assassinato, rasgou logo o meu contrato, quando me viu sem roupão.


O PASQUIM – E como é que você se vira com esses valentões?

NOEL ROSA – No século do progresso, o revólver teve ingresso para acabar com a valentia.


O PASQUIM – Você sabe que o Josué Montello...

NOEL ROSA – Escreve sal com c cedilha.


O PASQUIM – Pois é. Ele agora é da Academia Brasileira de Letras, junto com a Pedro Calmon.

NOEL ROSA – Desta vez, juntou-se a fome com a vontade de comer.


O PASQUIM – Mas eles tem prestígio por aí, numa certa roda.

NOEL ROSA – Vassouras nos salões da sociedade.


O PASQUIM – Você não freqüenta essa roda, não é?

NOEL ROSA – Você pode crer que a palmeira do Mangue não vive em Copacabana.


O PASQUIM – Vamos falar mal das pessoas. E o Roberto Campos, hem?

NOEL ROSA – Que é também brasileiro. E em três lotes vendeu o Brasil inteiro.


O PASQUIM – Sabe que andaram pixando você sob o pretexto de que você é bom de letra mas não de música?

NOEL ROSA – Sendo as notas sete apenas, mais eu não posso inventar.


O PASQUIM – Bem, Noel, vamos acabar a entrevista. Adeus.

NOEL ROSA – Adeus é pra quem deixa a vida. Três palavras vou gritar por despedida: até amanhã, até já, até logo.

As respostas de Noel Rosa estão contidas nos seguintes sambas: “Eu sei sofrer”; ”Só pode ser você”; “Provei”; “Nuvem que passou”; “Você vai se quiser”; “É preciso discutir”; “Até amanhã”; “Quem dá mais?”; “Vitória”; “Fita amarela”; “O X do problema”; “Com que roupa?”; “Eu vou pra Vila”; “Feitiço da Vila”; “Boa viagem”; “Tarzan”; “Cidade mulher”; “A.E.I.O.U”; “Onde está a honestidade?” e “Mais um samba popular”.

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