quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Especulação imobiliária travestida de discurso ambiental ameaça moradores do Horto, no Rio

Desde meados dos anos 80, moradores da região do Horto Florestal, no Rio de Janeiro, começaram a sofrer com processos judiciais de reintegração de posse movidos pelo Jardim Botânico. A valorização dos imóveis na região do Jardim Botânico ao longo dos anos fez com que, nesses últimos meses, o conflito fundiário entre o Jardim Botânico e as centenas de famílias que vivem no Horto se intensificasse ao ponto de jornais como O Globo e parte da classe média carioca iniciarem uma verdadeira “cruzada” contra os moradores do Horto, taxando-os de “invasores”.

A realidade, contudo, é muito diferente daquela veiculada nas páginas do Globo ou ecoada por setores da classe média interessados na especulação imobiliária. A região do Horto passou a ser ocupada após a década de 50, quando a direção do próprio Jardim Botânico ofereceu aos vigias do parque moradias ali naquele entorno. A idéia era que as fronteiras do Jardim Botânico fossem permanentemente vigiadas, afastando o risco de crimes naquelas áreas. Aos poucos, a direção do Jardim Botânico estendeu aos outros funcionários do parque essa possibilidade de morar mais próximo ao seu local de trabalho, como bem descreve a historiadora e coordenadora do Museu do Horto, Laura Olivieri Carneiro de Souza:

No final da década de 1950 o diretor Paulo Campos Porto convidou os funcionários do Parque e do Horto que residiam em sua maioria na região do Grotão, mas também nas Vilas operárias perpendiculares à Rua Pacheco Leão e em outras localidades, para construírem suas casas mais perto do trabalho. A própria administração do Jardim Botânico desenhou uma planta de assentamento de casas a serem doadas para aqueles trabalhadores, as quais foram levantadas com o suor de seus corpos e captação de materiais a partir de seu próprio sacrifício. O Jardim entrava apenas com a planta. Assim nasceu o Caxinguelê, essa localidade que faz limite com o Parque e que vem sendo estigmatizada socialmente como ‘invasora’ da cidade. Com a construção das casas, Juscelino Kubitschek fundou a Escola Municipal e os moradores fizeram o seu clube de esporte e lazer”.

Especulação imobiliária contra moradores do Horto
Essa descrição feita pela historiadora e fruto de um longo trabalho de pesquisa sobre a ocupação da região desmonta por completo a falácia difundida pelo Globo e por alguns setores da classe média de que os moradores do Horto seriam “invasores”. Ora, se o próprio Jardim Botânico lhes ofereceu a possibilidade de morar naquela região, então não há invasão alguma. O que acontece é que a partir dos anos 80, como dito anteriormente, a região passou a ser cada vez mais alvo da especulação imobiliária, esta sim o verdadeiro fator da cruzada contra os moradores do Horto. E é interessante destacar ainda que não são somente essas famílias de funcionários e ex-funcionários do Jardim Botânico que habitam aquela região: atualmente, o Horto é ocupado por várias fundações e também condomínios de classe média alta.

E agora o mais interessante: nem as fundações nem os condomínios luxuosos são alvos de quaisquer processos de reintegração de posse. Isso deixa muito claro o caráter elitista do discurso de quem defende a desapropriação dessas quase 600 famílias de classe baixa que vivem ali na região do Horto. Esse elitismo fica muito evidente em um artigo do jornalista Marcos Sá Correa, publicado em novembro pelo Globo. Beirando a boçalidade, Correa usa um discurso supostamente ambiental para esconder o que de fato existe por trás dessa luta contra os moradores do Horto. A própria ironia do título do artigo – “Que belo Horto para plantar favela” – já antecipa o tom elitista que o autor desfia nas linhas que o sucedem.

Aquilo se chama Horto porque abrigou até meados do século passado talhões de mudas para reflorestamento. Eles constam de mapas do Ministério da Agricultura até meados da década de 1940. Suas alamedas tinham nomes de árvores. Era, então, um Horto ao pé da letra. A cidade perdeu-o. Ele foi surrupiado por administrações pródigas e funcionários espertos, depois por descendentes e colaterais de funcionários espertos, enfim por amigos e locatários de funcionários espertos. Qualquer um aproveitou a bagunça para se aboletar no jardim. O Jardim Botânico sequer fez a conta das casas que semeava. Seu número ainda varia entre 550 e 621. Há entre elas residências funcionais que ainda guardam os traços da arquitetura oficial. E também biroscas, garagens, oficinas e puxadinhos para acomodar famílias que procriam, parentes que chegam de longe e carros que não param de se multiplicar”.

Impressiona o tom de segregação e preconceito assumido nas palavras do jornalista do Globo ao tratar os moradores do Horto, que legitimamente ali se estabeleceram, como “invasores espertos”. O argumento de que a ocupação, especialmente na comunidade do Caxinguelê, ameaça as áreas verdes do Jardim Botânico e da própria Floresta da Tijuca cai por terra quando o próprio secretário executivo do Parque Nacional da Tijuca, Roberto Maggessi, sai em defesa dos moradores. Em carta enviada à Associação dos Moradores e Amigos do Horto, Maggessi explica que a comunidade do Horto jamais foi ameaça ao Parque, já que nem se situa em seus limites, mas sim na Zona de amortecimento, assim chamada por delimitar um espaço intermediário entre a cidade e a Floresta.

Visão progressista da SPU não agrada O Globo
E o mais interessante é que na lista de bobagens escrita pelo Globo, sobra até mesmo para a Secretaria de Patrimônio da União, que está intermediando o processo de regularização fundiária da região. O Globo não se conforma, na realidade, da mudança na orientação da SPU a partir de 2003, quando deixou de ser um mero órgão que catalogava propriedades da União para adotar uma postura sócio-ambiental na gestão do patrimônio da União. No mesmo artigo citado anteriormente, o jornalista Marcos Sá Correa atribui à SPU os atributos “militante e omissa”. Ora, o que o jornalista defensor da especulação imobiliária não percebe que é a SPU era omissa anteriormente; hoje em dia, ela adota uma postura totalmente progressista e em sintonia com o processo de democratização das instituições brasileiras. Assim diz Laura Olivieri Carneiro de Souza:

A mediação desse conflito de interesses no Horto pela SPU está sendo conduzida com ideário progressista e atesta o processo de democratização das instituições que nosso país está vivenciando merecidamente. Isso incomoda uns poucos 'poderosos' que têm visto os seus planos ruírem ou serem ameaçados por uma comunidade pobre no pulmão da zona sul carioca, num cenário deslumbrante exatamente por ser o Horto Florestal e nada diferente desta identidade e desta territorialidade (Fonseca, 2008).

Gostariamos de chamar a atenção para o duplo absurdo que está sendo vendido aos leitores desse meio de comunicação: primeiramente a tentativa de inverter a historicidade da região, 'plantando uma favela' (para usar a própria metáfora utilizada no perverso artigo publicado no jornal O Globo do dia 19/11/10) à revelia da realidade socio-histórica de uma comunidade tradicional, tranquila, honesta e trabalhadora cuja memória social refere-se ao trabalho e remonta ao Brasil colonial, compondo-se do entrecruzamento de personagens e momentos relevantes da história nacional, como a instalação da alta nobreza setecentista no Solar da Imperatriz, a resistência quilombola, as históricas lutas de classe do período da industrialização nacional, a resistência comunista durante as ditaduras militares, etc.

O direito à moradia dos habitantes tradicionais do Horto está ancorado em ampla e diversa legislação, nacional e internacional, que lhes garante a permanência e a posse da terra. Esses direitos estão igualmente fundamentados na legitimidade que esses moradores possuem com relação à região que ocupam historicamente. Crime é tentar retirá-los de onde estão, visando loteamentos milionários que a especulação imobiliária cobiça construir. Isso sim ameaçaria todo o meio-ambiente em sua dialética dimensão socio-ambiental
”.

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